domingo, 24 de março de 2019

A Lua em seu direito de se esconder


Ontem, noite de um sábado de março, caminhei no calçadão da orla pessoense preenchido por belos sons de uma voz, por assuntos cotidianos e por afinidades de sonhadores. Lá estava a Lua, não a nos olhar, nem a nos trair, mas sinalizando a sua indisposição para cumprir suas atividades diárias sobre nós: brilhar, tomar formas, iluminar o mar, servir de inspiração para os artistas pintarem as suas telas, acompanhar os viajantes em cruzeiros...
Ao contrário! Estava decididamente escondida por trás de nuvens noturnas deixando apenas a sugestividade da sua luz à mostra. A noite, embora no calçadão de uma vasta orla, estava quente e pouco ventilada.
Por isso, em poucos instantes, como num passe de pensamento mágico, percebi que a natureza nos dizia ter o direito de se recolher, de se recompor, de não trabalhar cotidianamente ao ponto de não a percebermos, por ser tão rotineira a sua manifestação. A natureza decidiu ficar quietinha e observadora, como se quisesse chamar a atenção de alguém.
Ao caminhar, ao olhar o céu, ao sentir o calor forte notei a minha pouca habilidade de ser grato por ter diuturnamente (e não apenas diariamente) os festejos naturais à minha frente: o brilho da lua, os ventos fortes, as ondas do mar, as nuvens, as afinidades.
https://www.foap.com/image-photo/noite-lua/page-7
A minha habilidade, ultimamente, tem sido corresponder às exigências do mercado de trabalho, do outro, das formações de pessoas com alteridade, de esclarecer algo esplêndido diante da cegueira social, de levar o remédio em tempo hábil para as doenças emocionais dos dias atuais (e vindouros).
O silêncio não tem me acompanhado há meses, bem como a habilidade para perceber a minha respiração. Não me lembro de ter tomado um café da manhã com olhos sensíveis à cor e ao sabor das frutas matinais.
Como diz a canção interpretada por Lulu Santos “somos feitos de silêncio e som”, também. A pressa e a gana por corresponder às exigências do mundo ao meu redor, a necessidade (de quem mesmo?) por brilhar, por produzir, por ter mais e mais estão me tirando o direito de me esconder por trás de minhas "nuvens noturnas" e ficar no meu silêncio e no meu som, como plenamente fez a Lua ontem, noite de um sábado de março.